por AC Lukamba, em 2022-11-02

Cores da Imortalidade

Algo de errado aconteceu durante a última morte. Nossa tribo estava viajando pelo deserto do Namibe quando um outro grupo apareceu. Eles nos cercaram com motas e levantaram uma cortina de poeira sobre a areia vermelha. Eram kukanos, grupos heterogêneos demais para possuírem uma própria tribo ou partilharem coisas em comum alêm da incessante necessidade humana por destruição. Kalei tocou minha mão e me puxou para seu peito. Lembro de ouvir seu coração retumbar, alto, desgovernado, mas estranhamente familiar. Aquele corpo tinha uma doença que afetava seu coração, ninguém sabia alêm dele e de mim. Ninguém sabia sobre nós. Olhei além e vi corpos começarem a ser desfeitos. Vijei, meu bisneto de um outra altura, o mesmo que eu havia pintado o rosto de manhã cedo, teve seu peito perfurado por uma rajada de balas. Lembro de ter gritado. Lembro de ter amaldiçoado aqueles homens mosntruosos. Não eramos uma ameaça para ninguém, não eramos lutadores, nem antigos escravos fugindo, não tinhamos inimigos, sequer tinhamos uma terra para reclamar. Não era justo. Lembro que Kalei me jogou para perto de minha filha e correu para ajudar os outros. Eu puxei seu pano e pedi que ficasse, se algo acontecesse precisavamos estar juntos, mas ele apenas sorriu para mim, disse que não importava o lugar, ele acabaria sempre por me achar e se afastara. Não lembro por quanto tempo nós ficamos presa no centro daquele redemoinho de horreres enquantos nossos filhos, sobrilhos e maridos eram destroçados por armas. A pintura sobre os nossos rostos havia sido desfeita pelas lágrimas, nosso medo exauria por nossos corpos e ameaçava nos sufocar como o ar cheio de areia no lugar. As motas zuniam e os motoqueiros zuniam junto. Então eu vi seu pano balançando no ar. Os simbolos de nossa familia manchados com sangue vermelho brilhante. E ele balançava grogue, quase caindo enquanto tentava chegar até mim. Eu me soltei das mulheres que tentaram me agarrar. Puxei a navalha da cintura de uma delas e corri como nunca. Kalei havia sido ferido na coxa. Poderia ser um ferimento simples, mas eu sabia que seu problema impedia que parasse de sangrar e eu não estava na posse de nenhum de seus remédios. Um kukano aproximou-se de mim. Suas cicatrizes tribais brilhavam sob a pele. Enfiei a arma em seu pescoço e o joguei com um chute para longe, depois corri até meu marido. Ele estava ajoelhado sob a areia, o peito demasiado acelerado. Ele ainda conseguiu sorrir ao me ver. Lembro de ter rezado novamente, dessa vez que os deuses nos levassem para uma era em que não haveria mais aquele tipo de violência, um lugar em que nossos corpos pudessem perecer pela brutalidade do tempo e só. Por toda a eternidede, ele disse para mim, tocou meus lábios com os dedos manchados e caiu imóvel no chão. Sem pensar duas vezes, passei a navalha pelo meu pescoço e me deitei ao seu lado. Ignorando a dor que estranhamente me acolhia com certa brutalidade e ao mesmo tempo com a amabilidade de uma velha amiga saudosa por me ver. A morte era algo familiar para nós. Morreramos tantas vezes que parecia simplemente como dar um mergulho num rio fundo e nadar de volta depois. Logo logo eu voltaria para a superficie sugando todo o ar ao meu redor. Lembro que alguém me virou, o rosto preto e dourado de meu marido foi substituido pelo sol brilhando forte no horizonte e o físico familiar de meu filho menor, aquele que eu havia dado a luz com esse corpo. Ele rasgou seu pano e usou para comprimir o ferimento. Tentei dizer não, mas falar era como engolir lava. Tentei afasta-lo mas não tinha forças suficientes. Naquela tarde eu não morrera junto com meu marido como fizeramos tantas outras vezes ao longo das eras. Guardas fronteiriços vieram ao nosso auxiliu e salvaram a vida dos remanescentes, inclusive a minha. Naquela noite eu perdera a única pessoa que realmente amei de verdade. * * * Eu me casei novamente com outro homem da tribo, Ngoogo era seu nome. Um homem bom. Eu Era jovem demais e não estava habituada a ficar sozinha. Não tirei minha vida porque sabia que isso só complicaria ainda mais as coisas. Kalei e eu nunca tivemos intervalos tão longos entre vida e morte. Então meu filho nasceu, e eu estava disposta a esquecer tudo: Kalei, nossa imortalidade, nossas vidas passadas e sufoca-las dentro de mim como todas as outras palavras que tentava pronunciar. Após a dor do parto, era como se tivesse renascido, num corpo velho, mas ainda assim numa vida totalmente nova, então eu segurei o bebê e nossos olhares se encontraram e embora ele não pudesse me ver, eu o via ele. E era horrível o que eu via. Não! Não, Deuses não! Não queria acreditar, não podia ser! Entreguei a criança para a parteira, decidida a não acreditar naquilo. Mas eu o conhecia tão bem, vira seu espirito se manifestar em tantos corpos que simplesmente passara a enxergar isso e não sua forma física. Eu sabia bem no fundo que sim. Quis gritar como nunca, quis possuir voz para tal ato. A kubata parecia estar a encolher e ameaçar me esmagar. Eu havia dado a luz a Kalei, meu antigo marido. Ngoogo se aproximara da esteira e colocou o pano com que me comunicava sobre o meu peito. " O que foi minha agaba?", questionou. Apontei para o símbolo que significava desculpa. "Por que? Não tem nada que se desculpar. É um menino saudável, é tudo que sempre quis." Seu rosto estava mais escuro que o habitual. Quando sentira os primeiros sinais de que o bebê iria sair eu o chamei e pintara seu rosto com as cores da deusa da maternidade. O preto com linhas obliquas finas de laranja-esperança. Ele não parara de rir e dizer para mim o quanto estava emocionado. Agora o que ele faria se eu contasse quem era o espírito que habitava o corpo de seu filho? Me perdoe. Mostrei. Só me perdoe. Ele afagou minhas tranças e beijou meu rosto. "Descanse apenas." e saiu junto com nosso filho... com Kalei. Sempre pensara que nossa habilidade era uma dádiva proporcionada pelos deuses que ao presenciarem nosso amor haviam nos permitido preserva-lo para toda a eternidade. Nunca tinha me passado pela cabeça que algo assim poderia acontecer. Depois disso eu comecei a perguntar para mim mesma se eram realmente dons que nos proporcionaram ou se não passavam de maldições. As coisas foram piorando a medida que ele crescia. Nossos espiritos não se lembravam dos seus eus antigos de uma hora para outra, era um processo gradual e demorado. Eu sabia que tinha até a adolescência de Simbi, como eu o havia chamado, até que a personalidade de Kalei fosse totalmente restaurada e eu não conseguisse mais resistir a sua atração. Eu precisava arranjar uma solução para aquilo. Mas enquanto isso, Simbi continuava agindo de um jeito que eu sabia que ele próprio não entendia. Quando eu o dava de mamar, seus olhos não se desviavam dos meus. Seu toque me arrepiava e por mais que eu tentasse mante-lo afastado de mim, as pessoas o traziam sempre de volta. Elas começaram a falar sobre minha aparente apatia para com meu filho homem e saudável, duas coisas que eram muito difíceis de se conseguir nos dias atuais. Meu filho que havia salvado minha vida aparecera certo dia em casa e contara sobre o que ouvira a meu respeito. "Claramente eu não acreditei, sou seu filho e sei que você não dá nada alêm de amor e carinho." Disse. "As mulheres daqui só estão com inveja." Eu sorri para ele, agora tinha uma barba espessa e suas pinturas possuíam traços femininos. Era um homem feito. Não me lembrava Kalei, nenhuma de nossas proles era parecida connosco, pelo menos não com a visão que tinhamos de nós mesmos, de nossos primeiros corpos. "Você parece pensativa" Estou pensando no seu pai. Ele sorriu. O que você acharia se ele tivesse retornado? "Do mulumbi? Nossas ancestrais não deixariam ele sair do mundo dos mortos, mãe, você sabe disso." Você sabe tão pouco meu filho, invejo sua inocência. Mas não respondeu a minha pergunta. "E preciso mesmo? Meu pai era um homem bom e inteligente, ele morrera tentando salvar nossas vidas e fora acolhido pelos ancestrais nas raízes de nossa familia, sair de lá significaria a degradação de nossa ancestralidade. Nunca faria isso, e se por acaso alguém dissesse ser ele, eu o arrastaria até ao homem do chicote, e diria que apanhara um feiticeiro." Eu me encolhi com a menção do homem do chicote. Havia me esquecido completmanete que poderiam acontecer com qualquer um que possuisse o que nós possuíamos. Você tem razão. Mostrara. Ouvimos gritos dentro da kubata e Ngoogo saiu as pressas gritando meu nome e carregando Kalei em seus braços. "Adawa! Adawa. Ele disse a primeira palavra ele disse a primeira palavra" Nós nos levantamos da esteira. "O que ele disse?" Meu filho perguntou. "O nome de alguém, não conheço mas acho que é um nome. Precisamos começar os preparos para a comemoração, sua vigésima quinta lua aqui na terra." Kalei ergueu as mãos e grogueou sons mostrando que queria ser pego por mim. Eu o recebi em meus braços e senti o calor de seu corpo minúsculo sobre o meu. Eu o abracei forte por momentos desejando que tudo isso fosse uma ilusão e que o antigo Kalei estivesse ali quando voltasse a abrir os olhos. Queria beija-lo, sentir seus musculos, senti-lo e depois ouvir seu coração bombeando sangue. Mas não estava, não podia fazer nada daquilo que imaginava? O que pensar dessas coisas sobre meu próprio filho me tornava? "Qual foi o nome que ele dissera", meu filho questionara por fim, retirando-me de meus devaneios. "Ele disse Ayuma." E la estava a dura realidade se manifestando. Eu puxei a criança de meus ombros e a encarei. Ayuma Humbi era meu antigo nome, meu primeiro nome. O que estava acontecendo? Não era suposto ele recuperar as memorias tão cedo. Ele tocou meus lábios e meu queixo, fazendo o que parecia ser uma carícia, mas nos gestos nada suaves de um bebê. Deuses! Ele já tinha consciência de quem eu era realmente. As investidas tornaram-se mais frequentes quando ele completou dez anos. Simbi não respeitava seu pai, ou nossa privacidade como marido e mulher. Ele o olhava feio, tecia comentários sobre sua idade ou sua competência. Usava seu conhecimento de milênios e mais milênios para envorgonha-lo em qualquer área. Um dia o confrontrei. O que está fazendo? Quer ser descoberto? "Não sei do que você está a se referir, mamã." Pare com isso. Você não fala como uma criança, mostra saber mais que adultos vividos, e olha para sua mãe como se estivesse admirando uma puta, em algum momento alguém vai desconfiar e leva-lo a um kimbanda. Ele olhou para mim enquanto meus dedos pulavam de um símbolo para o outro, os olhos tristes por pena. "Seria tão fácil se livrar dessa deficiência, Ayuma. De nossa deficiência. Poderiamos fazer isso juntos." Ele segurou uma faca que estava sob a mesa. "Poderiamos voltar ao que éramos." Ele se aproximou e passou os dedos pelos meus lábios, como sempre o fizera, mas agora o gesto me deixava nauseada. Não tem mais volta, mostrei. Não depois de dar a luz a meu antigo marido. "Antigo? Engraçado. Acha mesmo que uma vida e um erro apagarão milênios de amor?" "Uma vida não. Nove luas. O tempo que você ficou na minha barriga. Eu amo meu filho e você é meu filho. É só esse o tipo de amor que você irá receber."Ele apertou a faca sobre o punho. "Nós fomos feitos um para o outro Ayuma, para toda a eternidade lembra? Somos deuses entre os mortais, e somos singulares. O que vai fazer quando essa sua birra idiota terminar, quando seu corpo perecer e renasceres com nenhum deles aqui?" Não sei. "Eu sou o único que te entende. Sou o único que vai entende-la daqui a centenas de anos. Não rejeite isso, ouviu, não rejeite isso ou vai se arrepender." Ele estava próximo demais agora, pisando sobre o pano de símbolos e com a faca erguida em minha direcção. Eu não conseguiria mostrar símbolo algum. Então toquei seu rosto, desfazendo a pintura perfeita que ele próprio havia feito. O beijei na testa e fiz que não com a cabeça, porque eu não poderia mais dar a ele o que queria. Sequer poderia dar a mim mesma o que parte de mim queria. Nossa história de amor acabara quando ele fora morto no Namibe e embora eu não consiga esquece-lo, esquecer tudo o que fomos e somos, agora um novo laço havia se formado e esse era intrasponível para mim, uma mãe, fosse qual fosse o corpo que nós habitassemos, parte dele agora era minha. Ele viu a negação em meus olhos. Aproximou demais a faca sobre a cicatriz em meu pescoço. Seus dedos tremiam e a pintura de seu rosto se enchiam de pequenas rachaduras. Gritou de raiva e me soltou, cravando a faca sob a mesa. Não olhou para trás. Eu nunca mais o voltei a ver. Em nenhuma outra vida.
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